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03/08/2015

CASE STUDY: Estado, muito Estado, demasiado Estado, ontem, hoje e amanhã

«A Fosun comprou a Fidelidade por €1,1 mil milhões. A Fidelidade investiu mil milhões em dívida da Fosun e mais €300 milhões em imobiliário espalhado pelo mundo. Imóveis que ninguém conhece e papel comercial cujo risco é elevado. O supervisor dos seguros diz que está tudo bem. Que não há problema em pegar nas poupanças dos portugueses e enviá-las para a China, Austrália ou Japão. (…)
O supervisor que garante que é tudo transparente e de acordo com as regras é o mesmo que foi convidado para ir falar num seminário da Fosun em Xangai, a título pessoal, que tirou férias para o fazer e que até pagou do próprio bolso a deslocação e estada durante três dias. E ninguém acha estranho. Pois eu acho. E muito. (…)»
Compreendo as preocupações e as críticas de João Vieira Pereira – que faz parte da minoria de jornalistas que me parecem profissionais e independentes - no seu artigo «E se não vendessem o Novo Banco?» no Expresso, a propósito da Fidelidade. Ainda assim, convirá olhar para o fotograma sem perder de vista o filme de onde foi extraído e que vem sendo rodado nos últimos 40 anos.

A Fidelidade de hoje é o resultado da fusão de várias seguradoras que foram nacionalizadas durante o PREC - os seus accionistas foram indemnizados muitos anos depois pelos valores que o governo entendeu e alguns deles endividaram-se mais tarde para recomprar as empresas de que tinha sido expropriados. A Mundial, que entretanto incorporou a Confiança, foi recomprada pelo grupo Champalimaud e vendida por este ao governo Guterres; a Império foi recomprada pelo grupo Mello, posteriormente vendida ao BCP, que comprou igualmente a Bonança fundiu ambas e vendeu-as ao governo Santana Lopes; no final a Fidelidade acabou a incorporar todas essas seguradoras que o governo Passos Coelho vendeu aos chineses da Fosun.

Nos 3 últimos anos antes da venda à Fosun, a média do ROE da Fidelidade foi inferior a 7% (já em 2014 foi de 13,7%) pelo que a venda de 80% do capital social por um montante praticamente igual aos capitais próprios num mercado estagnado e com pouco perspectivas de crescimento não se pode considerar um mau negócio. É claro que teria sido melhor vender uma Fidelidade com uma quota de mercado de 28% a um grande grupo segurador internacional. Teria sido, se algum grande, médio ou pequeno grupo segurador internacional estivesse interessado em comprar uma tal quota de um mercado periférico e anémico. Também teria sido preferível aguardar uns anos e uma melhor conjuntura. Teria sido, se o governo não estivesse encostado à parede por um endividamento pantagruélico pelas razões conhecidas e por um compromisso assinado pelo PS de privatizar várias empresas públicas, incluindo a Caixa Seguros, a holding de controlo da Fidelidade (ponto 3.30 do MoU).

Quanto ao investimento em dívida da Fosun representar cerca de 10% das aplicações financeiras da Fidelidade, é excessivo? Provavelmente. E cerca de 30% «em imobiliário espalhado pelo mundo»? Depende.  Pode ser até um princípio prudencial de diversificação. Em todo o caso convém saber que essas aplicações estão sujeitas aos critérios de valorização das normas internacional IFRS e, no que respeita aos títulos representando provisões técnicas, sujeitas a regras específicas consoante a sua natureza. E não será excessivo manter quase 2,8 mil milhões de dívida pública portuguesa?

E o que dizer do total de aplicações em dívida pública dos PIGS em 2011 que ultrapassava os 2,5 mil milhões (84% dos quais dívida portuguesa) com mais de 500 milhões de imparidades potenciais não reconhecidas no balanço (91% provenientes de dívida portuguesa)?

Quanto ao «pegar nas poupanças dos portugueses e enviá-las para a China, Austrália ou Japão» só pode ser um momento de distracção de João Vieira Pereira, que saberá certamente poder escrever uma coisa parecida – e igualmente demagógica - relativamente a obrigações detidas pela Fidelidade de emissores privados sediados na Alemanha, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Itália, etc. em cuja dívida de empresas privadas a Fidelidade tem aplicados 1,5 mil milhões.

O que ressalta deste filme? A presença sufocante do Estado no princípio, no meio e no fim. E num fim, que é apenas um outro princípio, em que vamos continuar a ter Estado, desta vez chinês, através de accionistas que tudo indica fazerem parte da nomenclatura do capitalismo de estado do PCC que capturou a economia e a sociedade chinesas.

Como chegámos aqui, perguntarão? À custa de muita asneira, incompetência, negligência e alguma corrupção durante 40 anos.

[Não vou comentar as suspeitas implícitas sobre o supervisor, de cuja idoneidade tenho a ideia de não ser pior do que a média da nomenclatura doméstica – o que não é uma grande referência, reconheço.]

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