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18/07/2012

Mito (80) – Os pobres revoltam-se

«Uma das coisas que hoje fica bem é dizer, com ar sério, que os "sacrifícios atingem sobretudo os mais vulneráveis". Com esta expressão, é suposto estarmos a referir-nos aos pobres e desprotegidos. Mas aqueles que vemos a fazer greve, a marchar e a gritar nas ruas nunca são os mais pobres e desprotegidos - são, pelo contrário, aqueles que melhores condições de trabalho têm em Portugal. Profissionais dos serviços públicos de saúde ou de ensino, trabalhadores das empresas públicas de transportes - tirando as manifestações e greves políticas do PCP, têm sido esses os grandes contestatários do regime.

Para perceber a revolta, é preciso começar por perceber a razão pela qual estas congregações profissionais estão entre as mais bem pagas e protegidas. Quando os profissionais da saúde protestam por agências privadas de recrutamento lhes oferecerem tanto como a uma empregada doméstica, revelam tudo: só recebem mais na medida em que o Estado lhes paga ou manda pagar mais. Ou seja, não há empregadores e clientes dispostos a pagar-lhes o mesmo que lhes pagam os contribuintes.

Na nossa sociedade, o Estado é a única via através da qual certas classes 'profissionais - e repare-se que falo de classes, não de indivíduos -conseguem arrancar à sociedade o prestígio e o rendimento a que aspiram. Provavelmente, se o serviço doméstico fosse um" serviço público, também os seus profissionais seriam recompensados muito acima das tabelas atuais. Dizem alguns: sem o Estado, não haveria determinados serviços. Não: o que não haveria era determinadas corporações com as vantagens de que hoje desfrutam.

Estes grupos profissionais são, simultaneamente, os mais fortes e os mais vulneráveis. Os mais fortes porque têm sobre os governos uma capacidade de pressão que o próprio Estado lhes deu, quando pôs à sua mercê uma massa de clientes e utentes que, agora, podem usar como reféns para negociar contratos e carreiras. Os mais vulneráveis, na medida em que as suas remunerações e estatutos (enquanto grupo) dependem de um Estado que chegou aos limites da exploração fiscal do resto da sociedade. A falência do Estado ameaça os seus sonhos de conforto e de influência.

Está aqui o verdadeiro material humano das revoluções. As revoluções, ao contrário do que diz a lenda, nunca foram feitas pelos descamisados, mas por aqueles privilegiados a quem os regimes deixaram de satisfazer as expectativas. Os líderes jacobinos de 1789 não saíram de uma burguesia marginalizada e prosaica, mas de uma nobreza cheia de ideais patrióticos; os chefes bolchevistas de 1917 não eram camponeses famélicos, mas membros da intelligentsia com soluções revolucionárias para todos os problemas. Com os seus diplomas, contratos coletivos, ordens e sindicatos, os profissionais dos serviços e empresas públicas são hoje a aristocracia ofendida do regime democrático. Na sua compreensível irritação, podem ser tentados a deitar tudo abaixo. Antes, porém, não deverão esquecer uma coisa: a nobreza patriótica e a intelligentsia revolucionária acabaram entre as vítimas das revoluções que fizeram


«Os mais vulneráveis», Rui Ramos no Expresso de 15-07

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