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16/05/2014

TIROU-ME AS PALAVRAS DA BOCA: «Troika: um conveniente bode expiatório...»

É tão raro alguém publicamente desalinhar da lengalenga dominante sobre a «austeridade» e os «sacrifícios» que a Alemanha e/ou troika e/ou o neoliberalismo injustamente nos impuseram, engraxando desavergonhadamente as nossas piores fraquezas e a nossa falta de coragem de responder pelas nossas vidinhas, que devemos saudar quem recusa o discurso do facilitismo, como Aurora Teixeira, professora de Economia da Universidade do Porto nesta peça no Expresso:

«Falta um dia para a já célebre e muito festejada saída da troika. Segundo o vice-primeiro ministro, Paulo Portas, "o fim da troika é o fim de um ambiente depressivo" . O êxtase é secundado pelo primeiro-ministro, Passos Coelho, que rotulou 17 de maio de 2014 como o dia da reconquista pelos portugueses da liberdade de decisão do país! No seu tom habitual, Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP, associa a anunciada 'saída limpa' da troika a 'um exercício de mistificação e mentira' . Já o PS e o seu líder, António José Seguro, que há alguns meses exigiam ao governo uma 'saída limpa', perderam, subitamente, a vontade de se juntarem aos festejos.

Pode-se dizer, em boa verdade, que a generalidade dos portugueses não parece nutrir grande simpatia pela troika. Recordando um estudo de opinião efectuado para o Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa, de Maio de 2013, quase metade dos inquiridos era de opinião que o memorando com a troika nunca deveria ter sido assinado. Adicionalmente, para mais de um terço dos respondentes a troika demonstrou insensibilidade para com a situação da economia portuguesa, sendo que apenas 10% dos inquiridos aprovava que se cumprisse o acordado no memorando.

Emerge, do exposto, duas características bem típicas dos devedores: falta de memória e ingratidão.

É útil retornar um pouco atrás no tempo relembrando que a economia portuguesa, com uma base económica estruturalmente fraca, praticamente estagnou entre 2002 e 2011, tendo crescido apenas a uma taxa média anual de 0,45%. Mais grave, esta estagnação foi acompanhada por um hiato crescente entre a poupança e o investimento internos, traduzido em elevadas necessidades de financiamento externo.

Apenas a concretização do pedido de assistência financeira à União Europeia e ao FMI em abril de 2011 permitiu evitar uma situação iminente de incumprimento do Estado português perante os seus credores. Sem este apoio supranacional, o ajustamento da economia teria uma natureza bem mais abrupta, com implicações sobre o bem-estar dos portugueses muito mais adversas que as que se verificaram ao longo destes 3 anos de 'austeridade'.

Parece, assim, excessiva as 'celebração' pela saída da troika, cedendo-se irracional e hipocritamente à tentação de apontar esta última como a culpada de todas as maleitas que Portugal vem padecendo. Tal como os judeus constituíram, durante o período nazista, um 'conveniente' e propagandístico bode expiatório, tendo sido apontados como os únicos culpados pelo colapso político e pelos problemas económicos da Alemanha, também em Portugal a troika alcançou, nestes últimos 3 anos, similar estatuto.

É da mais elementar honestidade intelectual que reconheçamos que o problema essencial que esteve (está!) na base das debilidades da economia portuguesa, e que já existia antes da crise financeira internacional de 2008, é o da fraca produtividade (e, por decorrência, competitividade). Esta fraca produtividade tem múltiplas causas, todas elas da 'nossa' (governo, instituições, empresas e cidadãos) exclusiva responsabilidade: existência de elevados custos de contexto (preços da energia e das comunicações superiores às médias comunitárias), sistema judicial lento e incompetente, baixa qualidade média dos nossos políticos, gestores e trabalhadores, ineficiente sistema de ensino e investigação, onde o empenho, o mérito e a exigência não são devidamente incentivados ou reconhecidos.

Em vez de procurarmos bodes expiatórios reflictamos sobre as palavras do intemporal Eça de Queirós que nos demonstram quão estruturais e enraizadas são as fragilidades económicas e sociais de Portugal:

"Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade... A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse." (in Distrito de Évora, 1867).

"Nós estamos num estado comparável ... à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma ladroagem pública, mesma agiotagem, mesma decadência de espírito, mesma administração grotesca de desleixo e de confusão. (...) quando se quer falar de um país católico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa - citam-se ao par a Grécia e Portugal. Somente nós não temos como a Grécia uma história gloriosa, a honra de ter criado uma religião, uma literatura de modelo universal e o museu humano da beleza da arte." (in Farpas, 1872).

Conhecendo os devaneios eleitoralistas dos nossos atuais e/ou potenciais governantes e a miopia dos eleitores, é minha convicção que as famigeradas reformas estruturais (incluindo reformas do mercado de trabalho, do sistema judicial, dos sectores das indústrias em rede, habitação e serviços), para aumentar o potencial de crescimento, criação de emprego e melhoria da competitividade, já eram... Creio que vou ter saudades da troika!»

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente texto, Impertinente.
Abraço do eao