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02/01/2016

Pro memoria (281) – Há coisas que não mudam o suficiente (1/2)

«A democratização do saber é a condição essencial para a existência de uma sociedade democrática, porque é no saber - e hoje talvez mais que nunca - que reside o Poder. De nada servem as revoltas das massas, mesmo aparentemente triunfantes, quando o saber está fora delas. Nem de nada servem eleições quando os eleitores são manipulados por aqueles que «sabem» e que lhes consentem a ilusão de conseguirem aquilo que elas querem.

E daí que o direito ao ensino seja considerado importante em democracia, daí que se projectem esquemas de escolaridade cada vez mais prolongada e que abranja um número cada vez maior de pessoas.

Mas esquece-se, ou até mesmo se ignora, que o «ensino» (tal como geralmente se entende) é uma coisa, e o «saber» é outra.

E mais grave ainda: confunde-se o direito ao ensino, ou a democratização do ensino com o direito a possuir um diploma atestando que uma pessoa frequentou uma determinada escola. Em nome da democratização do ensino reivindica-se a abolição do exame ou de qualquer prova que o substitua, reivindica-se a entrada sem discriminação nas escolas ditas superiores. A revolução de Abril foi celebrada com a famosa passagem administrativa, confusamente sentida como um acto de democratização, quando, na realidade, foi uma medida de degradação do saber. Nesta lógica, o ideal de democratização do ensino seria a distribuição de diplomas a todas as pessoas que os requeressem e independentemente das provas anteriormente prestadas.

Esta «democratização do diploma» é o nome que verdadeiramente cabe à «democratização do ensino» tal como muita gente a concebe. E mereceria uma análise que aqui não tem lugar. O diploma é concebido como um privilégio de certas classes mais favorecidas e, portanto, a sua obtenção o fácil, como uma forma de democratização. E infelizmente, na sociedade portuguesa, o diploma é carta de nobreza e via de acesso a vários empregos.

Ora esta maneira de conceber a democratização da escola é o mais perigoso inimigo da democratização do saber, porque é evidente que quanto menos se aprende na escola tanto mais baixo será o saber que se alcança. Urna sociedade de diplomados à maneira portuguesa, isto é, sem verdadeira selecção, não pode deixar de ser uma sociedade de ignorantes. A escola é facilitada, e, nessa mesma medida, o saber é diminuído. Se nos contentássemos com a nossa mediocridade nacional, esta distribuição geral de diplomas, na medida em que acabasse com privilégios, poderia talvez ser um ideal de democratização, porque por essa via seríamos todos iguais na ignorância. Mas Portugal vive no mundo, um mundo em que, a par de uma aparente igualdade entre as nações (todas têm igualmente direito a dizer disparates na ONU), se processa um desnivelamento cada vez mais fundado no saber de urnas e na ignorância de outras· O poderio ainda crescente dos Estados Unidos, mais do que do capital matérias-primas, mais do que do capital moeda, vem do capital saber ali acumulado. A continuarmos na política demagógica daquilo que se entende aqui por «democratização do ensino», atingiremos qualquer dia o nível do Uganda: no fundo, só o ideal democrático que estamos procurando, perfeitamente coerente com um «socialismo» que parece orientado para a criação de sinecuras pagas pelo Estado. Sermos todos contínuos doutorados - eis a que parece tender a nossa preguiçosa originalidade.


«Democratização do ensino e democratização do saber», capítulo de «Filhos de Saturno», de António José Saraiva (publicado originalmente no Diário de Notícias de 10-11-1978

(Continua)

1 comentário:

Unknown disse...

Vá lá saber-se porquê,lembrei-me da bicharelice das "novas oportunidades"...