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03/04/2016

Crónica da anunciada avaria irreparável da geringonça (25)

Outras avarias da geringonça.

Até agora a geringonça pôde contar com o colo de Belém, ainda que à custa de aceitar uma constante intromissão na sua esfera de competências, a tal ponto («espanholização» da banca, agendamento unilateral de visitas de Estado, recuo do ME nos exames do secundário, etc.) que o professor Marcelo já foi designado com grande propriedade como «o primeiro-ministro do primeiro-ministro».

A semana de Costa foi uma sucessão de sucessos mediáticos. Começou com a ratificação do OE 2016 pelo presidente dos afectos. E falando de «afectos», no lugar da geringonça, só contaria com os afectos presidenciais como um activo contingente provisionando devidamente as elevadas imparidades potenciais, porque na hora em que ele for preciso não vai lá estar, como de resto já deu para perceber na comunicação sobre a promulgação do orçamento (é o possível, vamos ver se o possível é suficiente, disse).

A semana de Costa continuou com a «cerimónia da Referenda da Lei da Assembleia da República que repristina quatro feriados nacionais» na Sociedade Histórica da Independência de Portugal com a presença do Duque de Bragança – se tivéssemos um jornalismo independente e uma opinião pública com um módico de lucidez, esta palhaçada para comemorar uma quebra potencial de produção de 1,5% suscitaria o espanto ou o ridículo.

Seguiu-se um «Memorando de entendimento com lesados do papel comercial», conforme a prosa pomposa do DN, assinado por Costa, CMVM. BdeP, BES e a «Associação de Indignados e Enganados do Papel Comercial» (acredite-se ou não, é este o nome da coisa). Segundo o memorando, todas as partes estão de acordo. Em quê? Ora, em que ainda não estão de acordo e tentarão atingi-lo até ao fim de Maio. Pensei: melhor não é possível. Estava enganado.

Talvez o maior sucesso da semana de Costa tenha sido a apresentação do «Programa Nacional de Reformas», uma iniciativa que nas últimas décadas só encontra paralelo numa outra palhaçada memorável que foi o «Guião/Argumentário para a Reforma de Portugal» com encenação do desaparecido Paulo Portas. «Numa sessão digna de um espectáculo de Hollywood em que uma voz-off, depois de um exultante vídeo de enquadramento chama do estúdio o primeiro-ministro, este apresentou… apresentou… apresentou um PowerPoint», assim descreveu João Duque do ISEG a cerimónia.

Leia-se aqui uma comparação das tímidas reformas de Passos Coelho com as pomposidades de Costa e veja-se aqui uma parte da comunicação de Costa onde desfaz tudo o que disse nos últimos dois anos acerca das soluções milagrosas com que iria resolver os problemas do país:
«… só investindo/trabalhando/... ano após anos nós conseguimos melhorar/valorizar/... isto, aquilo e aqueloutro. Não por isso um desafio para os próximos doze meses, por ventura é um desafio que não é sequer para os próximos doze anos, mas é seguramente um desafio para os próximos cinco anos…»
Quem não está convencido dos amanhãs que cantarão segundo Costa é o BdeP que nas suas «Projeções para a economia portuguesa: 2016-2018» antecipa a queda em 2016, em relação a 2015, do consumo privado, do investimento, da procura interna e das exportações. Tudo a cair? Nem tudo - o consumo público aumenta, what else?

É provável que a geringonça atribua o «pessimismo» do BdP à campanha para pressionar a renúncia de Carlos Costa. É um pouco mais difícil explicar o «pessimismo» do FMI que no relatório de monitorização faz uma previsão para o crescimento do PIB este ano ainda inferior à do BdeP (1,4% contra 1,5%) sendo ambas inferiores à do governo (1,8%) e estima que o défice do orçamento fique 0,7 pontos percentuais acima da previsão da geringonça.

Continuando a saga das mil nomeações em cem dias de boys for the jobs, agora no que respeita a altos dirigentes da Administração Pública, este governo violou a lei nomeando sem concurso público, segundo as contas do Expresso, mais de 90% dos 140 dirigentes para as direcções-gerais, institutos e centros distritais. 

Como é possível a geringonça manter este universo paralelo com uma realidade virtual? Resulta de uma feliz e rara conjugação dos astros. Não se sabe por quanto tempo, estão alinhados os interesses de sobrevivência de Costa (não carece de explicação) e dos comunistas, em lento esvaziamento há décadas que se agarram à geringonça como náufragos a uma bóia, com os desejos de expansão, à custa do PS, note-se, do Bloco de Esquerda agora capitaneado pelo trio de «esganiçadas engraçadinhas», interesses por ora igualmente alinhados com os «afectos» de um presidente com o seu novo show acabado de estrear.

É claro que nada disto seria possível sem as «folgas» resultantes das políticas de «austeridade» e nomeadamente da folga nas contas externas, e sem a boa vontade de uma mídia onde a soma das causas socialistas, comunistas e bloquistas é imbatível e constrói uma narrativa encantatória em que uma opinião pública mal informada, traumatizada pela falta de dinheiro a que chamam austeridade, desejosa de boas notícias, com a cabeça enfiada na areia, aproveitando a aparente folga, se esforça por acreditar.

Portanto, meus caros, «habituem-se», como disse uma qualquer figura do regime a propósito de uma outra. A geringonça veio para ficar mais tempo do que se poderia pensar, dada a sua génese. Quanto tempo? Não se sabe. Sabe-se que é possível enganar alguns, toda a vida, todos durante algum tempo e, diz-se, não é possível enganar todos, toda a vida - quem disse isso não conhece os portugueses. Assim, receio que só por nós a geringonça teria uma longa vida. O que fará a sua vida menos longa é a maldita realidade e a falta de paciência dos credores.

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