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12/10/2016

O (IM)PERTINÊNCIAS FEITO PELOS SEUS DETRACTORES: O mistério do Angoche (5)

Uma espécie de conto em fascículos, a pretexto do misterioso caso do Angoche há 45 anos, sobre a aventura de Ulisses Trinta e Quatro a bordo do dito Angoche. O autor APS, de quem já aqui publicámos há dez anos os «Contributos para a Teoria Geral do Prego» é um dos detractores mais impertinentes do (Im)pertinências.

48. Leviatã [continuação de (1), (2), (3) e (4)]

«Após o almoço a decisão unânime e irrevogável (irrevogável mesmo, ou seja, sem qualquer reinterpretação pós moderna do termo) dos oficiais foi a de contratar o senhor Ulisses como passageiro tripulante com a obrigação primeira de cozinhar e, só depois, todas as outras: o fricassé de frango não permitia qualquer outra alternativa!

Os dotes extraordinários do senhor Ulisses foram-se confirmando um atrás do outro, começando com as horas cujas previsões batiam certas ao minuto tornando obsoletos e pouco competitivos os relógios de bordo e prosseguiram com as marés com indicações mais exactas do que as dos boletins meteorológicos que tinham tendência a ignorar as configurações locais das costas demasiado caprichosas para a ciência que as fundamentavam. A este respeito é importante perceber-se a importância crucial destas informações para a cabotagem. Em alguns portos as barras andavam por via de regra bastante assoreadas e sem a consideração acertada da altura da maré corria-se o risco, sempre lamentável para o currículo do comandante, de ver o navio transitoriamente quando não definitivamente encalhado.  Não é muito conhecido o caso mas um comandante de um outro navio operando na mesma arte entrava num ou noutro porto aproveitando a onda que elevava um par de decímetros o fundo do navio da areia, avançando uma dezena de metros entre cada encalhe. Ao cabo de duas ou três viagens já ninguém ligava aos boletins excepto os emitidos pelo senhor Ulisses para entrar ou sair de um porto e a previsão do tempo seguiu o mesmo padrão mostrando-se consideravelmente mais eficiente do que a oficial ou seja o Senhor Ulisses para o período da semana que lhe ficava pela frente nunca falhava ou falhou uma previsão.

Numa área contudo os resultados do senhor Ulisses foram decepcionantes. Como lavadeiro não logrou conseguir e muito menos manter a tripulação minimamente limpa mas o facto de estar a lidar com a tripulação mais porca de toda a cabotagem consentiu, mesmo assim, um elogio da oficialidade que nunca vira tamanhos primores entre a marinhagem. 

As operações de carga e descarga, naquela época e naquele tipo de navios, requeria intervenções humanas bastante distintas e afastadas das actuais condições em que os operadores daqueles movimentos não fazem outra coisa que não seja carregar em botões numa consola qualquer, por vezes apreciavelmente longe do local em que se efectua a movimentação da carga, isto é, aqui e ali havia que usar o físico, e bem, para enfiar os embrulhos (os contentores por essa altura eram ainda uma miragem) nos sítios certos. Num desses momentos um tripulante torceu a espinhela e umas vértebras terão saído do lugar e o homem ficou torcido sobre si próprio mais paradinho que o Cabo das Tormentas. De nada valeu terem-no levado ao hospital: as radiografias não acusavam nada partido. Mas o homem estava entrevado e, segundo a tripulação dada a pessimismos catastróficos, para sempre. De volta ao navio e já deitado na saleta que servia finalidades várias entre as quais a de enfermaria, o senhor Ulisses, na qualidade de tratador mor e único da tripulação, falava calmamente com o marinheiro encrencado tentando perceber o que lhe acontecera mas bem no fundo só para o descontrair. Depois de obter do paciente o acordo para lhe fazer uma massagem na zona onde a costeleta se tinha descarrilado propôs uma manipulação da coluna para lhe endireitar a espinhela alquebrada: Fora o milagre: cinco minutos depois o marinheiro andava no convés, pelo seu pé, mais direito do que um fuso e o senhor Ulisses conquistara, não uma posição hierárquica, mas o sentimento de irmandade entre toda a tripulação.»

(Continua)

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