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22/11/2016

DEIXAR DE DAR GRAXA PARA MUDAR DE VIDA: O Portugal dos Pequeninos visto pelo último dos queirozianos (13)

Outros excertos.

Mais um excerto (neste caso uma crónica completa) de outra das crónicas, compiladas em «De mal a pior» (D. Quixote), de Vasco Pulido Valente, o último dos queirozianos, não no estilo mas na substância, com a sua visão lúcida, por vezes vitriólica, deste Portugal de mentes pequeninas e elites medíocres.

«Um estudo de Luís de Sousa, sociólogo do ICS, mostra que 63 por cento dos portugueses toleram (ou, mais precisamente, aprovam) a corrupção, desde que ela produza "efeitos benéficos" para a generalidade da população. Isto não é um sentimento transitório, provocado por trapalhadas recentes; é uma cultura. A cultura dessa grande guerra que cada um de nós tem com um Estado opressor e remoto e com governos que nunca respondem pelo que fazem ou deixam de fazer. O português médio execra a autoridade, seja sob que forma for, e vive no seu país como se vivesse sob ocupação estrangeira. O servilismo e a falta de carácter, que tanta gente pelos tempos fora lamentou, escondem a vontade de salvar a pele e a aspiração, muito natural, de enganar quem manda.

Não há regras para ninguém, porque ninguém cumpre as que por acaso há. Quem pode levar a sério uma escola em que o próprio ministério fabrica os resultados, proíbe legalmente a reprovação e aceita a violência? Quem pode levar a sério um regime que se diz democrático e selecciona o funcionalismo pela fidelidade partidária? Quem pode considerar um ponto de honra pagar impostos, quando a fraude e a injustiça fiscal são socialmente sinais de privilégio e esperteza? Quem vai pedir um recibo ao canalizador ou ao electricista ou a factura no restaurante, quando sabe que o Estado gasta sem utilidade e sem sentido? E quem vai obedecer às determinações da câmara do seu sítio, quando a câmara é uma agência de negócios de favor e uma bolsa de favores sem explicação e sem desculpa?

Não admira que o "povo dos pequenos" conspire constantemente contra a lei e até contra a decência. Que falte ao trabalho ao menor pretexto; que trabalhe mal, se trabalhar bem lhe custa; que peça aqui ou empurre ali, para se beneficiar ou aliviar; que tome as ruas uma lixeira pública; que guie, na cidade ou na estrada, como se estivesse sozinho; que minta a torto e a direito sobre o que lhe apetece e lhe convém; que não passe, enfim, de um miserável cidadão, indiferente à política e ao país. Não lhe ensinaram outra coisa. Os chefes são como ele. Os políticos são como ele. O Estado é como ele. Como exigir que ele se porte como Portugal inteiro não se porta? Claro que ele aprova a corrupção e consegue ver nela virtudes redentoras. Não é agora altura de mudar os costumes.»

O triunfo da corrupção, 12-03-2010

Esclarecimento:
Desta série de posts, nomeadamente deste post, não deve concluir-se a minha concordância total com a visão (queiroziana) de Pulido Valente, frequentemente redutora de uma realidade bem mais complexa do que fazem supor as suas simplificações, em parte inevitáveis pelo formato de crónica. Ainda assim, mesmo quando a simplificação vai longe demais, como aqui, a sua visão é um oportuno contraponto aos delírios da comentadoria doméstica fabricados por ignorância, estupidez ou encomenda.

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